Cinema mudo
Outro dia fui assistir a um filme mudo na Cinemateca. O filme "Sunrise" de F. W. Murnau, que estreou em 1927, é um clássico do cinema e está carregado de belas imagens, que transmitem o caráter humano e a verdade que o compõe.
Quando estamos a assistir a um filme em que temos apenas as imagens e alguns interlúdios que nos situam na história, podemos apelar ao nosso sentido da visão e observar o filme na sua plenitude. Ver um filme é muito diferente de o escutar. As imagens falam-nos como se tivessem voz e nós escutamo-las pela intensidade das representações, pela expressão facial e pelos gestos dos atores. Quando a tela é muda, conseguimos observar pormenores que de outra forma não conseguiríamos. No cinema sonoro estamos tão distraídos que não vemos nada e as representações parecem-nos ótimas, mas se nos pedirem para imitar a expressão ou os gestos de determinado ator, tomaremos consciência que tudo isso nos passou ao lado, no meio da confusão de sons, efeitos especiais e legendas.
Estar numa sala de cinema é um desafio para qualquer ser humano, mas ainda mais quando até o som da respiração é audível no silêncio sepulcral que se instala. Neste filme a que faço referência, fui confrontada com algumas pérolas que não posso deixar de partilhar. Logo para começar, a minha barriga sibilou uma prece de satisfação, fruto da meia de leite e do scone com que a alimentei antes do filme. Já a barriga do senhor que estava sentado ao meu lado rugiu intensamente, pelo que sou levada a concluir que não era alimentada há algumas horas. Depois, o roçar do meu casaco de pele contra a mala que tinha no colo fez com que acabasse por afastar os braços pousando-os em cima dos apoios das cadeiras. Quando à minha volta de instalou o conforto de um belo silêncio, eis que lá longe um telemóvel tocou. Porém, o ponto alto da trama deu-se quando alguém resolveu comer um rebuçado e, com a fúria própria de quem está desejoso de um doce, amachucou o papel para que toda a sala o pudesse ouvir, não sem que fosse interrompido por um valente "CHIU", que não só não aplacou o incidente, como ainda o acentuou.
É impressionante como o ruído perturba tanto a nossa concentração e como não nos deixa focar no que é relevante: o filme. Por isso, chego à conclusão, não surpreendente, que o cinema sonoro afasta-nos da essência, distraindo-nos com tudo o que está para lá da imagem, que essa sim "vale por mil palavras".
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